Esta história poderia ser o roteiro de um livro de ficção, de uma novela ou de um bom filme.
Segundo o historiador e pesquisador Luiz Mott:
“Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é certamente a mulher negra africana do século XVIII, tanto em África como na diáspora afro-americana e no Brasil, sobre quem se dispõe mais detalhes documentais sobre sua vida, sonhos, escritos e paixão. Foi considerada na época como “a maior santa do céu”, a quem brancos, mulatos e negros, inclusive toda a família de seu ex-senhor e respeitáveis sacerdotes, adoravam de joelhos, beijando-lhe os pés, venerando suas relíquias, intitulando-a “a flor do Rio de Janeiro”.
Rosa era uma menina negra nascida na Costa de Mina, de nação Courana, também conhecida como Coura ( ver mapa ), que desembarcou de um navio negreiro no Rio de Janeiro, em 1725: aos 6 anos de idade. Quando chegou ao Rio foi comprada pelo senhor José de Souza Azevedo, que a mandou batizar na Igreja da Candelária. Era certamente a igreja carioca onde mais escravos eram batizados.
Provavelmente nesta primeira fase de adaptação à sua recente condição de escrava, com novo nome, aprendendo língua estranha e costumes completamente diferentes dos de sua tribo natal e que era nativa da nação courana. Talvez possuísse algumas marcas tribais ou cicatrizes decorativas em seu rosto e barriga.
Os manuscritos da Torre do Tombo em Portugal que Rosa quando a tinha 14 anos foi comprada pela mãe de um de nossos mais destacados escritores do período colonial, Frei José de Santa Rita Durão, indo morar na freguesia do Inficcionado ( Distrito de Santa Rita Durão), em Mariana.
Na Capitania das Minas, como tantas escravas da Colônia, a negra courana vai viver do trabalho na faiscação ( Mineração ) e vender seu corpo e favores sexuais aos mineiros. Não é difícil imaginar todos os constrangimentos, violências e doenças que esta jovem africana deve ter sofrido, na condição de prostituta escrava-negra, numa região abarrotada de aventureiros e carente de filhas de Eva.
Ao completar 30 anos é atacada de estranha enfermidade: ficava com o rosto inchado, sentia tumor no estômago, caindo ao chão desacordada. Rosa decide então mudar de vida: por volta de 1748, vende seus poucos bens: joias e roupas, distribui tudo aos pobres. Adota vida beata, frequentando os ofícios divinos e liturgias, que eram celebrados nas igrejas mineiras, muitas delas acabadas de construir nessa mesma década. Foi numa dessas liturgias que Rosa encontra o Padre Francisco Gonçalves Lopes realizando exorcismos. Este sacerdote português era então vigário da freguesia de São Caetano ( Hoje Mons. Horta), era eficaz em tirar o demônio do corpo de brancos e pretos, que tinha por apelido Xota-Diabos.
Impressionada com a cerimônia do exorcismo, Rosa revelou ela própria também estar possuída por sete demônios. Em um exorcismo realizado, em Rosa, nessa mesma freguesia confirma ao sacerdote que de fato a escrava do era uma possessa especial, pois quando possuída, fazia sermões edificantes, sempre preocupada que todos mantivessem perfeita compostura nos templos. Falava grosso, caía desacordada e dizia ter visões celestiais, vendo por diversas vezes Nossa Senhora da Conceição, ouvindo diversos coros de anjos que lhe ensinaram algumas orações.
A fama de visionária de Rosa espalha-se por Mariana, Ouro Preto e região sempre acompanhada do padre Xota-Diabos e de seus exorcismos. Na Igreja do Pilar, em São João Del Rei, Rosa interrompe a pregação de um missionário capuchinho, gritando que ela era o próprio satanás. É presa e enviada para a sede do Bispado, Mariana, sendo açoitada no pelourinho com tal rigor que por pouco não morreu. O Bispo de Mariana D. Frei Manoel da Cruz encarrega uma junta de teólogos para investigar se a Rosa era mesmo possessa ou golpista. Após uma série de testes, inclusive um de resistência à chama de uma vela, que por 5 minutos suportou acesa debaixo da língua! – concluem os teólogos que tudo não passava de fingimento, passando então o povo a chamá-la de feiticeira.
Para evitar novos problemas, Rosa foge para o Rio de Janeiro, sempre auxiliada e protegida pelo seu padre Francisco Gonçalves Lopes, agora seu proprietário legal. O retorno à cidade do Rio de Janeiro se dá em condições bem melhores.
Rosa chegou a cidade do Rio de Janeiro em abril de 1751. A capital da América Portuguesa, que na época contava mais de 40 mil habitantes. Tão logo chega ao Rio, Rosa aprender a ler e escrever, tarefa que cumprirá razoavelmente. A vida mística de Rosa impressiona vivamente os franciscanos, que a veem cumprir todos os exercícios pios muito em voga nos séculos passados: jejum prolongado, autoflagelação, uso de silício, comunhão frequente. Por toda esta devoção Rosa recebe dos religiosos o título de ” Flor do Rio de Janeiro”. Seu nome é mudado para Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz – a segunda parte do nome é em homenagem a Santa Maria Egipcíaca (mulher egípcia que retirou para o deserto após uma vida de prostituição. É venerada como patrona das mulheres penitentes, em especial na Igreja Copta) e Vera Cruz ( Assim era chamado o Brasil).
Madre Rosa, como então era chamada por dezenas de seus devotos, sofistica suas visões, passando a escrevê-las ou ditando para que suas assessores anotassem tudo o que via e ouvia, seja revelado pelos santos, por Maria Santíssima ou pela própria boca de Deus. Sempre aplaudida e venerada pelo Padre Francisco Gonçalves Lopes, pelo seu frade confessor e por um capuchinho italiano, a Rosa escreve mais de 250 folhas do livro “Sagrada Teologia do Amor de Deus Luz Brilhante das Almas Peregrinas.
Em seu misticismo, como católica fervorosa assistida por diversos diretores espirituais, Rosa incorporou em sua espiritualidade o que de mais moderno existia em termos de devoção na época. Foi graças às visões de Rosa, e para representá-las visualmente, que os franciscanos construíram no Convento do Largo da Carioca a maravilhosa Capela dos Sagrados Corações.
A Idolatria pela Rosa foi tão grande, que o Padre Francisco Gonçalves Lopes mandou pintar um quadro sobre cobre, onde a negra courana posava como se fosse uma bem-aventurada, vestida de hábito franciscano, com as cinco chagas, cordão e rosário do lado, pisando alguns diabos. Numa mão segurava o Menino Jesus e na outra trazia uma pena, símbolo de sua erudição teológica, posto que o Padre Francisco Gonçalves Lopes, agora Capelão do Recolhimento, proclamara mais de uma vez que “Rosa deixava Santa Teresa Dávila a léguas de distância” e que aquela Doutora da Igreja não passava de uma “menina de recados” da mestra africana. Ao rezarem a Ladainha de Nossa Senhora, na estrofe Mater Misericordiae, suas recolhidas se inclinavam reverentes para a Madre Superiora, que era reverentemente incensada pelo sacerdote, o qual trazia no pescoço preciosa relíquia: um dente de Santa Rosa Egipcíaca!
A decadência da Madre Egipcíaca iniciou, quando ela se indispor com o clero carioca por ter repreendido alguns sacerdotes que davam mau exemplo conversando na igreja durante as cerimônias sacras, sendo denunciada ao Bispo sobretudo após ter retirado à força da igreja de Santo Antônio uma senhora da sociedade que se comportava com menos compostura. Rosa foi presa e dezenas de testemunhas passam a denunciar suas excentricidades como: como mãe de Deus, redentora do universo, superior a Santa Teresa, idolatria em seu recolhimento e rituais de magia.
Após quase um ano presos no Rio de Janeiro, Rosa e o Padre Francisco Gonçalves Lopes são enviados para Lisboa, sendo ouvidos pelo Santo Ofício, em 1763. O padre em poucas sessões do inquérito declara ter sido enganado pela falsidade de Rosa, alegando ser pouco letrado em teologia e ter-se fiado na boa opinião que o Provincial dos Franciscanos dela fazia. Pede perdão de sua boa-fé e excessiva credulidade: tem como pena o degredo de cinco anos para o extremo sul do Algarve, além de perder o direito de confessar e exorcizar.
Rosa, por sua vez, dá um heróico espetáculo de autenticidade, insistindo em muitas sessões que nunca mentiu nem inventou coisa alguma: confirma que todas suas visões, revelações e êxtases foram reais. De fato, ela acreditava ser uma predestinada e que Deus em sua misericórdia a tinha escolhido para revelar ao mundo seus desígnios. Enquanto os inquisidores insistem para que diga a verdade, revelando tudo não ter passado de fingimento para chamar atenção sobre sua pobre figura, Rosa diz ao contrário: “Tudo vi e ouvi!”
Quatro de junho de 1765 é a última sessão de perguntas à vidente afro-brasileira: neste dia ela narra uma de suas visões. A partir daí, inexplicavelmente, interrompe-se o processo de Rosa.
Segundo o Historiador Luiz Mott: “Dos mais de mil processos de feiticeiras, sodomitas, bígamos, falsas santas e blasfemos que pesquisei, não encontrei outro que ficasse inconcluso, pois sempre os inquisidores eram muito minuciosos em anotar o desfecho do julgamento: a pena a que foi condenado o réu, se morreu de doença no cárcere, se houve suicídio, se foi mandado para a fogueira ou para o degredo” .
A hipótese, do historiador, quanto ao fim desta história: ou a preta Rosa, como era depreciativamente referida no processo inquisitorial, ex-Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, morreu incógnita no cárcere inquisitorial, de doença natural ou velhice, esquecendo-se, o médico do Santo Ofício de registrar no processo o seu falecimento.