Os Últimos Carijós: Escravidão Indígena em Minas Gerais: 1711-1725

Respectivos índios em Minas Gerais durante o século XVIII

12/07/2018 às 13h43

Nos últimos anos, a historiografia relativa à escravidão indígena revelou uma realidade surpreendente. Contrariando assertivas consagradas, vários estudos mostraram que as populações nativas do Novo Mundo português foram, nos séculos iniciais da colonização, sistematicamente exploradas em fazendas destinadas à agricultura de exportação. Nas áreas economicamente periféricas, o escravismo com base no gentio da terra estendeu raízes profundas, sobrevivendo até a segunda metade do século XVIII. No dia-a-dia das plantações, no cotidiano da vida familiar e até mesmo nos momentos de revolta, os cativos ameríndios compartilhavam seus anseios e expectativas tecendo laços de solidariedade no universo das senzalas.

Em Minas Gerais colonial, a escravidão baseada na exploração do braço nativo foi implantada pelos bandeirantes. Já francamente decadente em São Paulo seiscentista, a instituição sobreviveu até a segunda década de ocupação da região do ouro, para em seguida praticamente desaparecer das vilas, arrais e lavras mineiras.

No presente trabalho, analisaremos a evolução da exploração do trabalho indígena no Termo da Vila Carmo, futura Mariana, durante o período que vai do estabelecimento da Câmara (1711) até a extinção local, ou quase-extinção, da exploração escravista dos grupos ameríndios (1725).

Como é sabido, Mariana foi um dos principais centros escravistas das Gerais, reunindo, no ano de 1718, 10.937 escravos, do total de 34.475 cativos mineiros dedicados à faina aurífera. A futura capital da primeira diocese mineira respondia por quase um terço da renda fiscal amealhada nas Gerais. Para se ter idéia da quantidade de ouro produzido na Vila do Carmo, basta mencionar que em 1721 o volume auferido na cobrança do Quinto local alcançou 104,3 kg de ouro, valor extremamente elevado perante os 367,5 kg coletados no conjunto da capitania. Mesmo reconhecendo a fragilidade do registro fiscal, pode-se afirmar que a produção aurífera marianense oscilava, no início da década de 1720, em torno de meia tonelada anual.

A rapidez com que os antigos povoadores, muitos deles egressos de São Paulo, trataram de substituir os índios por escravos africanos, também expressava a pujança do sistema econômico colonial implantado em Mariana. Graças ao ouro, os antigos paulistas puderam adotar o modelo escravista típico das áreas litorâneas, que tinham no braço escravo africano seu principal sustento.

Nas páginas seguintes, analisaremos o ocaso do sistema baseado na exploração do ameríndio. Uma vez dependendo da reprodução biológica para a reposição de gerações, o sistema escravista indígena mineiro entrou em declínio em virtude do desaparecimento das atividades de apresamento do silvícola. A proliferação de doenças, ao longo dos anos, comprometeu ainda mais a sobrevivência do sistema. As altas taxas de mortalidade, aliadas à quase ausência de reprodução biológica acabaram por inviabilizar a perpetuação das formas de exploração do trabalho nativo herdadas dos antigos bandeirantes.

CARIJÓS, CABRAS E NEGROS DA TERRA

Logo após o estabelecimento de instituições metropolitanas em Minas Gerais, as autoridades portuguesas, preocupadas com a regularização da cobrança de impostos, trataram de elaborar censos periódicos da população cativa. Tais levantamentos tinham por finalidade auxiliar a cobrança da Capitação, imposto que incidia sobre a propriedade escrava. Quando conservadas na sua integridade, as listagens de capitação guardam a memória viva da demografia histórica da região do ouro.

Segundo uma destas listagens, a população indígena marianense reduzia-se, no ano de 1725, a 29 homens e 21 mulheres. Na localidade em foco, 30 anos após o início da colonização, o escravismo com base no braço ameríndio havia se tornado, por assim dizer, residual. Os cativos, denominados nos documentos - de acordo com a tradição dos primeiros povoadores - como carijós e negros da terra ou, segundo expressão local, como cabras da terra, representavam apenas 0,4% dos 11.797 cativos ocupados nas lavras da Vila do Carmo.

Infelizmente, a documentação relativa ao início do povoamento de Mariana é pobre em informações a respeito das ocupações destinadas aos indígenas. Alguns indícios mostram, porém, que entre fins do século XVII e início do XVIII o gentio teve uma participação bastante significativa na vida social e econômica local.

Nos anos 1707-1709, por exemplo, os carijós mostraram-se fiéis aos próprios senhores, lutando aos milhares na Guerra dos Emboabas. Na década seguinte, os dados dos inventários post-mortem, estes últimos conservados somente em uma parcela mínima, arrolam várias lavras mineradoras em que os grupos ameríndios respondiam por um porcentual importante da escravaria.

Em 1716, Antônia Leme herdou do marido importantes lavras, e junto a elas 23 cativos, sendo 12 deles carijós. O mesmo ocorreu com Ana Maria Borba que, apesar de ser filha de uma das mais ricas e influentes famílias locais, manteve até a morte quatro carijós em seu plantel de 15 escravos. Mesmo os senhores mais poderosos de Mariana, aqueles que podiam recorrer ao mercado internacional de escravos, não deixavam de dispor de alguns índios remanescentes da primeira fase do povoamento.

Não há como negar que os ameríndios tenham tido um papel econômico importante na fase inicial da extração do ouro. Aliás, alguns testemunhos revelam, bem antes da ocupação sistemática de Minas Gerais, a habilidade do gentio da terra na lide aurífera. É isso, pelo menos, o que sugere a Instrução de Regimento de D. Rodrigo de Castelo Branco, datada de 1679, cujo texto arrola os carijós como trabalhadores regulares nas pobres lavras de Iguape e Cananéia:

   Terão particular cuidado de que o Apontador Francisco João da Cunha com os índios e ferramentas necessárias trabalhem na data de sua Alteza que lhe mandei medir no Ribeiro de N. Senhora da Conceição, e o Ouro que tirarem os índios, se entregará com recibo ao Apontador Francisco João da Cunha.

Nas mais diversas atividades, a população ameríndia era explorada ou servia de aliada aos bandeirantes paulistas. O levantamento dos raros inventários sobreviventes à ação devastadora dos parasitas e da umidade releva que, no início da década de 1710, os cativos carijós respondiam por 16 a 23% da força de trabalho da Vila do Carmo.

É bastante provável que o gentio também fosse utilizado localmente nas tarefas tradicionalmente a ele atribuídas em São Paulo colonial. Dada a ausência de caminhos , os cabras da terra deviam percorre as íngremes trilhas que uniam as lavras ao núcleo urbano, transportando mercadorias essenciais para a sobrevivência do garimpo. A caça, a pesca e a coleta, em virtude da irregularidade das linhas de abastecimento, também parecem ter tido bastante importância nos primeiros tempos da colonização mineira. Enquanto os homens encarregavam-se destas tarefas, as mulheres ocupavam-se do artesanato doméstico ou então trabalhavam na agricultura de subsistência.

Esta singular divisão de trabalho é ao menos sugerida no mencionado inventário do capitão Antônio Soares Ferreira. Nele foram registradas a posse de várias armas de fogo que, entre outros usos, podiam ser empregadas nas caçadas. O documento registra ainda quatro enxadas. Curiosamente, esse era o número de mulheres carijós adultas pertencentes ao referido senhor.

A permanência de traços e hábitos herdados dos primeiros povoadores também é percebida através das informações relativas ao tipo de agricultura desenvolvida na região. Os inventários registram a existência da lavoura de milho, produto essencial na antiga culinária paulista, consumido em forma de farinha, canjica, cuscuz, biscoito, e utilizado ainda como alimento de pequenos animais de criação:

Um sítio cito na Barra de Paratinga que está fronteira(sic) na borda do Rio Guarapiranga ... com matos virgens, com pastos, com roça para três ou quatro alqueires ... nele dois alqueires de milho.

Outro dado revelador do inventário mencionado acima é a ausência de referências a animais de carga. O transporte de mercadoria e do ouro deveria, dessa forma, recair sobre os ombros dos cincos carijós pertencentes ao referido Antônio Soares.

Os valores monetários alcançados na ocasião da venda dos escravos é outro indício que mostra a importância do gentio da terra na sociedade mineira. De acordo com John Monteiro, em São Paulo:

na segunda metade do século XVII, o preço de um índio já adaptado variava entre 20$000 e 25$000, ao passo que os índios recém-egressos do sertão eram vendidos ou leiloados por 4$000 ou 5$000.

Na Vila do Carmo, os valores alcançados pelos carijós atingiam cifras bem mais elevadas. Nos anos 1715-1716, os preços atribuídos aos índios oscilavam entre 60$000 e 120$000, sugerindo assim tratar-se de gentio já domesticado. Além de custarem caro, é interessante observar que os carijós da região do ouro representavam uma parcela considerável da riqueza senhorial. No inventário de Antônio Soares Ferreira, eles respondiam por 22,1% do monte-mor.

Apesar de alcançar valores significativos, o preço dos ameríndios estava longe de se comparar ao dos cativos da África. Como podemos perceber na Tabela II, para se comprar um escravo importado eram necessário, no mínimo, dois ou três carijós adultos.

Para entender essa singular desvalorização é nescessário ter em mente que, na sociedade colonial, o preço mais elevado alcançado pelos africanos é um fato corriqueiro. Além disso, cabe sublinhar a importância da idade e das condições de saúde como elementos fundamentais na formação dos referidos preços. Aos velhos, crianças, e doentes eram atribuídos valores inferidos aos alcançados pelos cativos sadios, de idade entre os 15 e 45 anos.

Sendo assim, é possível supor que os baixos preços atingidos pelos carijós, em parte decorriam dos preconceitos em relação ao índio, tido como indolente ou pouco produtivo, assim como poderiam refletiar a tendência à renovação ou ao envelhecimento a que os plantéis estavam submetidos.

Dadas, porém, as características do sistema colonial implantado na região do ouro, os indícios parecem apontar para um processo de envelhecimento dos plantéis. Isto decorria em virtude de dois fatores: por um lado, os descendentes dos bandeirantes abandonaram a caça aos silvícolas, dedicando-se à bem mais rentável atividade de exploração do ouro; por outro lado, os grupos indígenas de Mariana apresentavam, como vamos mencionar mais adiante reduzidas taxas de natalidade.

A não-renovação dos grupos submetidos ao cativeiro levava ao envelhecimento dos plantéis existentes e, consequentemente, à diminuição do preço dos carijós. Na tabela a seguir, podemos perceber que os valores monetários maior e menor referentes aos africanos variaram de 10 a 12,5%, ao passo que entre os índios a diferença era de até 30%. No referido inventário, há ainda o caso extremo de uma negra carijó velha que não tem nome que foi vista e avaliada por oito oitava, ou seja, cujo preço era 9$600 valor infinitamente menor do que o atribuído aos africanos.

Além de velhos, os carijós eram menos resistentes às doenças. Não é exagero afirmar que, ao longo dos primeiros vinte anos de colonização de Mariana, a região reproduziu, em escala microscópica, a hecatombe freqüente aos grupos populacionais do Novo Mundo que entravam em contato com os colonos europeus.

A MORTE DO GENTIO

A partir de 1718, quem percorresse as lavras marianenses perceberia ano após ano o desaparecimento do gentio da terra. Na década de vinte, a escravidão indígena marianense entrara em franco declínio. Os carijós de idade avançada e doentes, pouca serventia tinham, atingindo preços irrisórios que não se equiparavam aos dos pequenos animais, ou representavam uma fração mínima do valor referente aos negros africanos.

Lentamente, os ameríndios foram morrendo ou fugindo, dando lugar a uma escravaria de novo tipo. No intuito de avaliarmos detidamente a questão, selecionamos as séries documentais da freguesia de Guarapiranga. Na tabela III, a localidade em questão aparece como o principal centro do escravismo indígena da região marianense. Em 1718, Guarapiranga possuía 102 carijós, o que correspondia a 24,6% dos 414 negros da terra arrolados pela capitação referente ao conjunto dos núcleos auríferos da Capitania de Minas Gerais.

O arraial de Guarapiranga começou a ser povoado aproximadamente dez anos após a descoberta de ouro no Ribeirão do Carmo. Nos primeiros tempos, a localidade, apesar de ter sido um dos palcos da Guerra dos Emboabas, parece ter tido pouca importância econômica, não ingressando no livro de almotaçaria (registro de cobrança de impostos da Câmara sobre as vendas e lojas de secos e molhados) até 1718.

Uma vez iniciada a prospecção das ricas lavras descobertas na segunda metade da década de dez, Guarapiranga ganhou progressiva importância econômica. Em 1721, o lugar ocupava a sexta posição entre os dezenove núcleos auríferos fiscalizados pela Câmara de Mariana. O crescimento econômico foi reconhecido pelos administradores metropolitanos; em 16 de fevereiro de 1724, o arraial foi elevado à condição de freguesia, e a identificação de novas terras minerais, no mesmo ano, permitiu que a localidade mantivesse 1.193 escravos africanos e crioulos.

Geralmente, o metal precioso de Guarapiranga era explorado nos rios Piranga, Calambau, Turvo e Bacalhau, ou então nas vertentes da Serra da Piedade e do Tatu. As terras que ficavam nas margens dos rios também prestavam-se à atividade agrícola. Os donos das lavras muitas vezes associavam a lide aurífera à produção de alimentos, o que permitia o desenvolvimento de uma incipiente agricultura mercantil de subsistência, produtora de milho, banana, mandioca e cana-de-açúcar. Não era raro os inventários registraram numerosos engenhos e alambiques de cobre nas imediações do arraial ou nas paróquias vizinhas.

Durante a primeira metade do século XVIII, a freguesia permaneceu como limite da área de mineração; contribuía para isso a existência de uma barreira - bem mais poderosa do que os acidentes geográficos ou as florestas virgens - representada pelos índios bravios da Zona da Mata. Os camancâns, os pataxós, os maxacalis, os botocudos e os puri-coroado, durante muitos anos impediram o avanço das hostes mineradoras, estabelecendo uma fronteira militar sobre a fronteira econômica.

Para os grupos indígenas não domesticados, o arraial de Guarapiranga encerrava o limite aceitável da expansão colonial. As incursões para além daquele limite eram ferozmente rechaçadas, como ocorreu em 1731 e 1733, por ocasião dos ataques indígenas às freguesias de Barra Longa e Furquim.

Paralelamente à resistência indígena, a Coroa portuguesa, temerosa de que a abertura de novos caminhos em direção ao litoral pudesse intensificar o contrabando e a evasão fiscal, não estimulava a ocupação da Zona da Mata. Durante várias décadas a exploração do ouro foi protelada até que se conseguisse a aquiescência da Metrópole e a esperada vitória sobre os índios.

Na prática, a fixação da nova fronteira colonial só ocorreu em 1758, por ocasião da ocupação das matas do Pessanha. Ao longo dos anos, os primeiros povoadores dessa nova região foram progressivamente conquistando outras áreas, até chegarem aos contrafortes da Serra da Mantiqueira, na região do Rio Pomba, onde, em 1767, foram abertas lavras auríferas.

Nos primeiros tempos de ocupação de Guarapiranga, é provável que a captura de índios tenha sido uma atividade comum aos colonos. O arraial, aliás, reunia a nata das famílias dos antigos bandeirantes, a começar por Salvador Furtado de Mendonça e seus descendentes. Além deste importantíssimo sertanista, que por volta de 1694 preou índios na Zona da Mata mineira, identificamos no registro paroquial de Guarapiranga treze outros sobrenomes de ancestrais famílias paulistas, tais como Tourinho Domingues, Chaves da Silva, Pontes, Gil, Lara, etc.

Ao que parece, uma vez iniciada a prospecção do ouro, o comportamento dos ex- bandeirantes mudou completamente, assumindo um caráter defensivo. Não deixa de ser curioso observar, por exemplo, que mesmo as expedições ofensivas de 1734 e 1746; expedições destinadas a combater os botocudos e lideradas, respectivamente, pelo Mestre-de-Campo Matias Barbosa e pelo sertanista João de Azevedo Leme, não tenham resultado na captura de novos escravos índios.

Ao invés de atacar, os proprietários das terras minerais preferiam se defender. No citado inventário de Antônio Soares, constata-se a existência de um verdadeiro arsenal doméstico, constituído por nada menos do que seis espingardas e uma espada. O mesmo é observado na documentação de Furtado de Mendonça, cujo domicílio era protegido por treze pistolas, bacamartes e espingardas. Os antigos bandeirantes percebiam que a exploração do ouro era uma atividade bem mais rentável do que a preação do gentio. Em vez de enveredarem pelas matas, eles transferiam a responsabilidade da renovação dos plantéis aos comerciantes de escravos africanos que circulavam no eixo Rio-Minas.

Quando muito, a referência ao tempo das bandeiras tinha um caráter de ostentação, servia para lembrar a época de bravura, de coragem e determinação diante dos desafios do sertão e da fúria dos índios bravos. Provavelmente, não foi por outra razão que Bento Ferreira Furtado, filho do último sertanista mencionado acima, fez questão de declarar no testamento do pai o título de administrador do gentio da terra, fato surpreendente quando lembramos que não constava índio algum entre os 43 escravos por ele herdados.

Na ausência de grupos empenhados na captura dos ameríndios, só restava uma alternativa ao sistema escravista ameríndio de Guarapiranga: a formação de grupos familiares que garantissem a reposição das gerações destinadas ao cativeiro.

Infelizmente, o estudo desta possibilidade enfrenta dificuldades devido ao desaparecimento dos registros de batismo da paróquia em questão. Contudo, pode-se afirmar ser pouco provável que os índios apresentassem índices de reprodução significativos. Nos registros de óbitos do período 1718-1725 não constatamos a existência de criança alguma, fato extraordinário dada as altíssimas taxas de mortalidade infantil comum às populações pretéritas. Por outro lado, o levantamento dos inventários revelou que o número de crianças ameríndias com menos de sete anos era da ordem de 10%, índice que estava longe de garantir a reposição das gerações.

Entre os carijós, a baixa natalidade conjugava-se a um altíssimo porcentual de mortalidade. No gráfico abaixo, podemos observar que, em 1718, o gentio da terra era responsável por cerca de 26,6% do total de óbitos de cativos da freguesia de Guarapiranga. Para se ter idéia da magnitude deste percentual, basta dizer que na listagem de capitação do mesmo ano, o grupo populacional indígena corespondia a apenas 10,5% da população escrava.

A morte, desta forma, tratava de ir pouco a pouco destruindo o sistema escravista baseado na mão de obra ameríndia.

A riqueza das informações do registro paroquial não pára por aí. Quando contrapostos às informações das listagens de capitação, os dados relativos aos óbitos prestam-se ao cálculo de índices de mortalidade. Tais índices são, certamente, bastante primitivos, pois baseiam-se em diminutas amostragens. Apesar disso, eles revelam importantes aspectos a respeito do mundo indígena marianense.

No ano de 1725, por exemplo, contamos um óbito no grupo de oito carijós de Guarapiranga, e 46 óbitos na população de 1193 escravos africanos e crioulos da mesma freguesia. Tendo em vista tais números, podemos calcular as seguintes taxas de mortalidade:

Taxa de mortalidade de escravos africanos e crioulos = 38,5 por mil.

Taxa de mortalidade de escravos índios = 125,0 por mil.

A diferença entre o primeiro e o segundo porcentual era enorme. Os índios faleciam numa proporção três vezes mais elevada do que os negros africanos e crioulos.

Como nas demais regiões coloniais, a documentação paroquial de Mariana é bastante pobre no que diz respeito às causas dos óbitos. Sabemos, porém, que 38,4% dos índios falecidos entre 1718 e 1724 não alcançaram os sacramentos por morrerem repentinamente. A elevada incidência de mortes repentinas é bastante significativa, principalmente quando lembramos que ela pode estar relacionada com as epidemias propagadas pelos cativos recém-chegados da África ou pelos colonos oriundos do litoral.

No seu importantíssimo livro Erário Mineral, publicado em 1735, Luís Gomes Ferreira registrou as principais doenças que grassavam em Mariana na década de dez e vinte do século XVIII. Segundo o referido doutor, "a região era foco de muitas mortes repentinas causadas por fístulas, chagas, hidropsias e sezoens que se malignarão". Em relação aos dois primeiros males, percebe-se uma nítida alusão à varíola, doença propagada junto às populações ameríndias em razão dos contatos com grupos africanos de regiões tradicionalmente afetadas pela doença. A varíola ou bexiga era responsável, desde o século XVI, por freqüentes hecatombes entre os habitantes do Novo Mundo. Diversos testemunhos registraram o horror causado pelas asquerosas e hediondas lesões e pústulas produzidas na face, mãos e pés dos indígenas vítimas das bexigas, o mesmo sendo observado pelo autor do Erário Mineral.

Quanto à hidropsia e às sezões, cabe lembrar que a primeira designação indica inchaço na barriga, enquanto a segunda diz respeito à febres intermitentes. O mencionado inchaço podia decorrer de inúmeros fatores, sendo um deles os problemas causados pela malária sobre o fígado do doente. Quanto ao segundo termo, não resta dúvidas. Na maior parte do Brasil, ele diz respeito aos casos de malária. O impaludismo, aliás, foi reconhecido no século XIX como sendo uma endemia comum ao eixo que unia o município de Mariana ao de Santa Rita do Turvo, ou seja, justamente na área em que Guarapiranga estava compreendida.

Paralelamente às doenças causadas pelo convívio entre grupos populacionais distintos e pelo desequilíbrio ecológico nascido da derrubada das matas, as condições de trabalho deveriam ser outro fator que comprometia a saúde dos carijós. A mineração exigia que os escravos permanecessem da cintura para baixo imersos nos gélidos rios mineiros. Se lembrarmos que, além disso, na primeira fase do povoamento de Mariana, a fome foi uma realidade constante, não fica difícil imaginar quanto a pneumonia e a tuberculose causaram sangrias nos contigentes populacionais indígenas.

Contudo, o elevados índice de mortalidade não é um argumento suficiente para explicar o desaparecimento do conjunto da população ameríndia de Guarapiranga. Se novamente consultarmos o gráfico apresentado anteriormente, perceberemos que o número de óbitos do gentio da terra declinou após 1718, tornando-se insignificante na década de 1720. Ora, mesmo levando-se em conta que a documentação estar incompleta, é possível afirmar que, entre 1718 e 1724, a mortalidade foi responsável, no máximo, pela diminuição de uma quarto do número total de índios de Guarapiranga.

Ao que parece, outros fatores contribuíram para o desaparecimento dos carijós na referida freguesia de Mariana. A libertação dos cativos poderia ser um deles; afinal, como vimos na Tabela I, os índios, a partir de um certo momento, desaparecem dos inventários post-mortem. Se isto realmente aconteceu, cabe lembrar que os senhores não se deram ao trabalho de registrar as manumissões: nos 138 registros de óbitos consultados, não encontramos referência alguma à carijós forros.

A migração forçada ou degredo de índios também deve ter ocorrido com certa freqüência. Entre as medidas tomadas no período de governo do Conde de Assumar, consta a melhoria do caminho que ligava Minas ao Rio de Janeiro. A construção de estradas e abertura de caminhos, como é sabido desde a publicação dos Desclassificados do Ouro, era, na maioria das vezes, uma incumbência dos homens livres e pobres, sendo os carijós forros considerados como tais.

As fugas, coletivas ou individuais, ofereciam a possibilidade aos negros da terra de escapar às péssimas condições de vida da mineração. Em 1726 foi descoberto um quilombo na Casa do Casca, núcleo pertencente a temida e pouco explorada Zona da Mata, região próxima à Guarapiranga. Em 1733, outro quilombo mineiro recebeu a denominação de Carijós. Em que ano este refúgio teria sido fundado e por que recebeu esta designação?

Muitos índios fujões, ou abandonados a própria sorte, devem ter engrossado a massa de pobres e desclassificados sociais das vilas e arraiais mineiros. Junto aos demais homens livres e pobres, eles circulavam de lugar a lugar, vivendo nas fímbrias do sistema e extraindo seus recursos econômicos do contrabando, roubo e do garimpo clandestino. A mudança do perfil dos ameríndios ficou inclusive registrada na documentação oficial. Nos anos trinta, o gentio da terra praticamente desapareceu das listagens de escravos, passando então a ser arrolado sistematicamente junto aos demais facinorosos das Minas. A eles cabia agora tomar cuidado para não caírem nas malhas do sistema jurídico criado para tornar os desclassificados sociais produtivos.

Ano após ano, o carijó escravo vai dando lugar ao carijó livre; homem fora da lei ou imerso no universo da pobreza. Em meados do século XVIII, pouca lembrança restará do ameríndio utilizado como instrumentos de colonização. A partir de então, o escravismo indígena tende a deslocar-se para as áreas periféricas à mineração. Nos núcleos que vão se abrindo, nas novas regiões agrícolas, assistiremos lentamente o renascimento de formas de exploração do trabalho compulsório do gentio, só que agora com base nos grupos humanos submetidos aos aldeamentos régios existentes na Zona da Mata mineira.

NOTAS

Sou grato à aluna do Departamento de História da UFOP, Priscila Carlos Brandão, pelo levantamento do inventários post-mortem na Casa Setecentista de Mariana.

* Professor do Depto. de História da Universidade Federal de Ouro Preto

1 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.         [ Links ]

2 Dentre os trabalhos publicados nos últimos anos, vale destacar os seguintes: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria Municipal de Cultura/ FAPESP, 1992.         [ Links ]VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SCHWARTZ, Stuart B.. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988. (principalmente a primeira parte).         [ Links ]

3 GOULART , Maurício. A escravidão africana no Brasil; das origens à extinção do tráfico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, p. 140.         [ Links ]

4 O entesouramento e o contrabando, é bom lembrar, desviavam grandes quantidades de ouro do controle fiscal. Em 1713, o confisco gerou uma quantidade de ouro duas vezes e meia mais elevada do que a arrecadada com o fisco, PINTO, Virgílio Noya . O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. São Paulo: Ed. Nacional/INL, 1979,p.60.         [ Links ]

5 PINTO, Virgílio Noya. idem.,p.72 e Arquivo Histórico da Câmara de Mariana (AHCM), cód. 648.

6 Matrícula de escravos e vendas (1725), AHCM, cód. 150.

7 Os exércitos paulistas eram formados por 1.300 a 2.000 homens, ver BARREIROS,Eduardo Canabrava. Episódios da Guerra dos Emboabas e sua Geografia. São Paulo: EDUSP/Itatiaia,1984,p.125.         [ Links ]

8 Inventários post-mortem, Arquivo da Casa Setecentista (ACS), cód. 1 Of. 94/118 e 68/1457.

9 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Notícia das Minas de São Paulo e dos Sertões da Mesma Capitania. São Paulo: EDUSP/Itatiaia,1980.78.         [ Links ]

10 Questão brilhantemente analisada por Holanda, Ségio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 2ª ed.. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.         [ Links ]

11 MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., p.67.

12 ACS, cód. I Of. 68/1457.

13 MONTEIRO. Op. cit., p.156.

14 ACS, códs. I Of. 100/2089; 8/1870.

15 BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Saterb, 1971,p. 362.         [ Links ]

16 AHCM, cód. 165. O livro começa em 1716.

17 Livro de Cobrança dos Quintos (1721), AHCM, cód.648.

18 Livro de Datas de Terras Minerais (1724), ACS, cód. I Of. L.D.

19 BASTINI, Tanus Jorge. Minas e Minérios no Brasil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1957, p.186.         [ Links ]

20 Inventário de José Duarte de Andrade (1722), CSM., cód.2 Of. 40/925.

21 MERCADANTE, Paulo. Os Sertões do Leste. Estudo de uma região: a Mata Mineira. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p. 53.         [ Links ]

22 BASTINI, Tanus Jorge. Op.cit., p.185.

23 FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1989. As terras do referido bandeirante, em parte, pertenciam à freguesia de São Caetano.         [ Links ]

24 MERCADANTE, Paulo, op. cit., p.53.

25 CSM, cód.2.Of., 138/2800. Neste inventário são feitas referências a animais de carga, o que leva a crer que a transição do sistema de trabalho já estava completa.

26 Duas crianças num grupo de 19 índios.

27 LUNA, Francisco Vidal. Op. cit., p. 37.

28 FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral dividido em doze tratados. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1735, p. 431.         [ Links ]

 

29 John Monteiro atribui grande importância às epidemias(não especificando os nomes das moléstias), ocorridas na década de 1660, para explicar o declínio do número de escravos índios em São Paulo. O autor não mencionou, porém, que o período epidêmico foi antecedido pela chegada de numerosos escravos africanos na região, ver: MONTEIRO, John, op. cit., pp.119 e 127. No que diz respeito à relação entre as epidemias de varíola e o tráfico internacional de escravos, consultar: ALDEN, Dauril e MILLER, Joseph. "Unwanted cargoes: the origins and dissemination of Smallpox via the slave trade from África to Brazil, c. 1560-1830". In KIPLE, K.F.(ed.), The African exchange. Durham: Duke University Press, 1988, pp. 34-109.         [ Links


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